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PONTO CORRENTE

Ponto Corrente

SINOPSE

Com base em pesquisas e entrevistas, o espetáculo aborda a militância feminina no ABC paulista contra a ditadura civil-militar brasileira. Como em diversas outras localidades, elas não pegaram em armas, mas foram responsáveis por um importante movimento de conscientização, de conquistas comunitárias e avanço social, seja à frente no combate seja no suporte às ações transformadoras.

 

RELEASE

Ponto Corrente é a segunda parte de uma trilogia sobre a região do ABC paulista focada na atuação das mulheres.

A primeira peça, Ponto segredo. Primeiros fios, circunscrita às primeiras décadas do século passado, contempla a temática fabril em vários de seus aspectos: as donas de casa e suas fiações e costuras domésticas, a operária da indústria têxtil e sua participação nas primeiras greves, a mulher de um operário da construção da ferrovia São Paulo Railways.

Pretende-se dar continuidade à pesquisa ao abordar, num segundo momento, dos anos 1960 à abertura política nos anos 1980. Dessa vez, o tema será a mulher na vanguarda e na retaguarda da resistência ao regime militar. 

O objetivo principal é ampliar a reflexão acerca dos elementos formadores e caracterizadores da região, tendo como foco a participação feminina. Ao abordar o período de repressão por que passou o país, pretende-se analisar o papel de muitas mulheres tanto à frente de movimentos revolucionários quanto no suporte a familiares e amigos, no abrigo e na proteção dos que protagonizaram o confronto, bem como na “micro-revolução” diária em salas de aula, na vida social e profissional, etc.

Nesse sentido, uma importante fonte de pesquisa para a criação da dramaturgia de Ponto Corrente foi a dissertação de mestrado de Sandra Aparecida Portuense de Carvalho, defendida no Departamento de História da PUC-SP em 2013 sob o título "Experiências de solidariedade e política - CB 22 - A Ação Popular no Jardim Zaíra (1958-1970)".

A autora busca contextualizar a formação do bairro e as conquistas alcançadas ao longo do tempo graças às ações dos moradores, seja por meio de associações espontâneas, seja com a orientação ou apoio do padre local e, mais adiante, de atividades vinculadas à militância contra a ditadura militar.

E para tratar da militância feminina em todo esse contexto, fez-se necessária a abordagem do processo de emancipação da mulher brasileira e, para isso, o período de pesquisa utilizou-se, dentre outros trabalhos da autora Rose Marie Muraro,  A libertação sexual da mulher. Nele, ela faz todo um preâmbulo histórico e sociológico antes de chegar ao assunto do título. Retoma estudos de seus livros anteriores (A mulher na construção do mundo futuro e A automação e o futuro do homem) e em sua argumentação recorre à Física, à Tecnologia, à Economia e até à Ecologia de modo tão arrojado que, em muitas passagens, a obra parece ter sido lançada hoje e não em 1970.

Para ela, a libertação sexual da mulher passa, em especial, pela libertação econômica: “Trata-se de dar à mulher jovem formação pessoal, competência profissional e suficiente consciência social para que possa conscientemente decidir o que fazer com sua vida” (p. 155). Enquanto ela for dependente, sob algum aspecto, de outrem, a libertação nunca será completa. Lidas agora, tais frases parecem evidentes – mesmo sabendo-se que muitas mulheres ainda estão longe de tal independência. No entanto, foi preciso um movimento feminista para que esse tipo de frase ganhasse tom de verdade.

No entendimento do coletivo, a militância feminina durante a ditadura civil-militar brasileira deveu-se, em grande parte, à emancipação que ganhava força nos anos 1950 no país. Embora um grande número de mulheres, donas de casa em sua maioria, tenha ido às ruas nas “marchas da família com Deus pela liberdade” e contra o comunismo, ou seja, pela manutenção status quo, muitas outras arriscaram a própria vida por uma liberdade ainda maior.

E no trabalho de campo, as atrizes, Camila Shunyata, Fernanda Henrique, Roberta Marcolin Garcia e Vivian Darini, que mergulharam no processo criativo de Ponto Corrente e a dramaturga, Adélia Nicolete, entrevistaram mulheres que tem suas histórias ligadas diretamente aos temas do espetáculo. A pesquisa permeou todo o processo, tanto que as atrizes participaram da Roda de Conversa “A resistência feminina na Ditadura Militar” realizada no Memorial da Resistência em São Paulo e do Seminário “A Justa Rebeldia das Mulheres na América Latina e Caribe” realizado pelo Sindicato dosBancários em Santo André. Tais pesquisas foram primordiais para dar voz às personagens e redimensionar os conflitos vividos naquela época para os dias de hoje.

No que se refere às questões estéticas, a estrutura do primeiro espetáculo da companhia, Ponto segredo. Primeiros fios, foi baseada, em parte, no teatro Nô japonês.

Em Ponto Corrente, a opção pela estética do Nô foi aprofundada. O tema mostrou-se propício na medida em que os fantasmas da ditadura, sejam eles “reais” ou imaginários, ainda rondam. Militantes desaparecidos, ainda sem morte esclarecida ou corpos encontrados, clamam por sepultura. Uma parte da sociedade, equivocadamente, clama pelo sepultamento da democracia e a ressurreição da ditadura militar.

O Nô presta-se à saudade, mas principalmente ao tributo àqueles que morreram de forma violenta ou apaixonada e que ainda vagam por entre os vivos, na maioria das vezes inconscientes, em busca de alguém que os conduza finalmente à paz.

A encenação de Ponto Corrente fez a sua antropofagia da linguagem do teatro Nô, o canto, a dança, a música estão revisitados nas cenas juntamente com todos os temas que aparecem no espetáculo.

 

 

FICHA TÉCNICA

DRAMATURGIA:

Adélia Nicolete

DIREÇÃO:

Jé Oliveira

 

DIREÇÃO MUSICAL:

Fabrício Zava

 

ELENCO:     

Camila Shunyata

Fernanda Henrique

Roberta Marcolin Garcia

Vivian Darini

 

CENÁRIO:

Ana Paula Patrone

João Paulo Maranho

 

FIGURINO:

Ana Paula Patrone

 

AULA TEÓRICA TEATRO NÔ:

Luís Alberto de Abreu

 

WORKSHOP PRÁTICO TEATRO NÔ:

Ana Chiesa

Antonio Salvador

 

WORKSHOP FLAUTA DOCE:

Marta Roca

 

AULA FLAUTA DOCE:

Felipe Pimenta

 

WORKSHOP DE PERCUSSÃO:

Tuka Ferreira

 

DESIGNER GRÁFICO:

Paulo Serra

 

PRODUÇÃO GERAL:

Pontos de Fiandeiras

 

DATA DA ESTRÉIA: 20/08/2016

LOCAL: Clac São Bernardo do Campo

PÚBLICO: acima de 14 anos

 

AGRADECIMENTOS

Antonio Possidonio Sampaio (in memoriam), Maria Júlia de Oliveira Lobo, Diva Alves, Mônica Roberto Antonio, à equipe do Museu de Santo André Dr. Octviano Armando Gaiarsa, Eduardo Garcia Acedo, ARCA, Otoni Pedro Lima, Mariana Carolina de Lima, Solange Dias, Academia de Leitores, Casa da Palavra, LEBEM, Centro de Exposições e História de Ribeirão Pires, Silvia Côrrea,  Dalila Teles Veras, Luzia Maninha Teles Veras, Valdecírio Teles Veras, Eliane Teressam Ferro, Aline Ferrari, Cido Faria, Ana Paula Abreu, à equipe do Museu de Mauá, Sérgio Pires, Xico Bezerra, Elaine Bombicini, Marlene Mourão, Carolina Cristiani, Fórum de Coletivos Teatrais do ABC, Paulo Azevedo, Wallace Puosso, Débora Brenga e Victor Nóvoa.

APRECIAÇÕES CRÍTICAS

PONTO CORRENTE – MULHERES, REPRESSÃO E TEATRO NÔ

Por Dalila Teles Veras

 

Era uma noite de um dia tenso, aquela do dia 31 de agosto. 

Uma noite que trazia como presságio a possibilidade daquele dia que morria, vir a durar 20 anos, assim como durou um dia semelhante, no já longínquo 1964.

Carregada de abatimento, fui. Não poderia faltar. Afinal, ali, no palco do Teatro Municipal de Santo André, estaria o Grupo Pontos de Fiandeiras, com o espetáculo Ponto Corrente. Artistas de fibra, gente que admiro e acompanho com interesse, desde o primeiro trabalho. 

Ali, pelas artes da arte, aspectos da História de um obscuro período brasileiro, a ditadura Civil Militar (1964-1984) passava pelas mentes e corações do público presente, diga-se, em número surpreendente para um dia como aquele.

A peça, com a dramaturgia sempre sensível e elaborada de Adélia Nicolete, é o resultado de exaustiva pesquisa do grupo Pontos de Fiandeiras, sobre mulheres ativistas no ABC nos anos 60 a 80. Mulheres que não esmoreceram, ainda que o silêncio imposto pelas circunstâncias e cultura machista tentasse, sem êxito, o apagamento de seu papel.

Maria da Graça, Maria da Fé, Maria das Dores, Maria Auxiliadora, mulheres que sustentaram, nos bastidores, mas sempre de forma decisiva, a manutenção das grandes greves de 1979 e 1980 na região. Marias que, na linha de frente, lutaram por creche, moradia, mobilidade e outras causas sociais. Mulheres, cujos corpos lembram a desmoralização, mas que hoje “determinam onde é o seu lugar”. Marias que entristeceram quando ouviram os Joões dizerem que “construíram tudo sozinhos”, mas seguiram à busca da própria identidade. Marias que amaram até o limite do amor, na clandestinidade. Mulheres que já sabiam que “quem não conclama convoca os ditadores.  Mulheres que o grupo agora revela, através de sua pesquisa de campo, retirando-lhes os véus de suas respectivas histórias.

Mas é teatro... Diz o bordão da peça, que se vale de elementos do Teatro Nô e, como na vida real, de alegorias para camuflar verdades.

A metáfora do navio conecta os fatos de então (viagem, retorno ao recordar) aos dias de hoje. O elenco, composto pelas jovens e talentosas atrizes Camila Shunyata, Roberta Marcolin Garcia, Fernanda Henrique e Vivian Darini “materializa” de forma muito digna e verdadeira essas personagens saídas da vida real direto para o teatro.

Sim, é teatro, mas é tudo verdade e vale, para além do deleite da arte, também para reflexão sobre os dias que passam. 

Ao final da apresentação, a grata surpresa: chamaram a atriz Sonia Guedes, decana do nosso teatro andreense, presente na plateia, a quem homenageiam com uma fala no final da peça. Tudo muito singelo, tudo muito bonito.

Tudo aquilo, confesso, acabou me deixando, como diria o Poeta maior, “comovida como o diabo”.

 

Texto publicado no blog: http://dalilatelesveras.blogspot.com.br/

 

Dalila Teles Veras Dalila (Isabel Agrela) Teles Veras, poeta, animadora cultural, natural do Funchal, Ilha da Madeira, Portugal, (1946), emigrou com a família para o Brasil (São Paulo, Capital), em 1957. Em 1972, radicou-se em Santo André. Publicou mais de uma dezena de livros, nos gêneros poesia, crônica e o livro "Minudências", um diário do ano de 1999. Participou de inúmeras antologias no país e no exterior. Possui trabalhos (artigos, ensaios e textos literários) publicados em jornais e revistas de todo o país e do exterior. Assinou, de 1995 a 1999, a coluna semanal Viaverbo, no Caderno "Cultura & Lazer" do Diário do Grande ABC. É filiada à União Brasileira de Escritores, entidade onde ocupou os cargos de Secretária Geral, Diretora e membro do Conselho, nas gestões de 1986/88, 1990/92 e 1994/96. Fundadora do Grupo Livrespaço de Poesia (1982-1993) que manteve intensa atuação na divulgação da poesia e publicou 5 coletâneas. Foi uma das editoras da revista literária Livrespaço, ganhadora do Prêmio APCA - Associação Paulista de Críticos de Arte, como melhor realização cultural de 1993.

 

Por que assistir Ponto Corrente?

Por Marcelo de Paiva

Catarse. A arte em seu poder de tocar nossas mais profundas paixões é apresentada no espetáculo Ponto Corrente da forma mais elementar que o teatro pode fazer. Com delicadeza e sensibilidade, as Fiandeiras, vão tecendo os fios do passado e do presente, dos discursos e dos silêncios, das personagens e do público, da arte e da vida, ao longo do espetáculo. A beleza da trama tecida no palco é costurada por uma narrativa que pendula entre repressão e resistência, público e privado, memória e esquecimento permeada o tempo todo pelo universo do feminino como mostra a personagem Graça em uma das suas passagens mais sensíveis da dramaturgia de Adélia Nicolete:

 

“Quem vai querer saber de uma dona de casa, Jennifer?! Vocês já viram alguma ‘do lar’ nos livros?! A nossa vida se faz no pequeno em tudo que não se nota. E costura de bainha, que fica escondida. É remendo pra disfarçar o que se rasgou: ninguém percebe. A nossa história é no miúdo que se faz, e a História importante, aquela que interessa, precisa de grandeza”

 

Mas ao contrário do que acha Graça, é exatamente aí que Adélia Nicolete dá força a Ponto Corrente. Fio a fio as Fiandeiras vão envolvendo o público a começar pelo lugar do cotidiano. Das associações de bairro do Jardim Zaíra espalhando abaixo-assinados por escolas, postos de saúde e saneamento básico, passando pelas reuniões de sindicatos e ações pelos fundos de greve dos operários da indústria automobilística em São Bernardo do Campo até a metalinguagem da menção digna e bela ao Teatro de Alumínio de Santo André, as narrativas que se desenrolam vão abordando a resiliência diária do universo dos operários do ABC em suas incansáveis campanhas por direitos sociais, em face ao medo constante da repressão violenta física e sobretudo psicológica que rompeu com sonhos, amores, famílias, prazeres, sentimentos, corpos, mentes, direitos, enfim, com a liberdade, em um dos tempos mais sombrios da história do país cujas feridas permanecem abertas.

 

O tenso equilíbrio entre repressão e resistência aparece de várias maneiras nas histórias de vida de cidadãs comuns, entre várias Marias que estão entre nós, inclusive em nossas famílias. A dor da tortura de ter visto aqueles que ama sofrendo por sua causa, faz Maria da Fé se apegar às suas crenças para afugentar seus medos. Maria das Dores, cuida das suas se tornando Maria Auxiliadora de outrem, já que para si, nem sequer esperança restou. Maria da Graça, com humor se apega aos prazeres pequenos da vida e à companhia de outras mulheres para encobrir o vazio de um abandono ingrato. As três personagens desenvolvem entre si a mesma cordialidade feminina silenciosa que as atrizes experienciaram com as fortes Marias que inspiraram esse espetáculo e continuam por aí entre nós resistindo. Aliás, por falar em resistência, ainda prestam homenagem digna e sublime à atriz Sônia Guedes por seu papel nessa história.

 

O forte elenco vem com atuações potentes e viscerais, a atriz Fernanda Henrique traz com força o horror do medo da tortura encolhida no chão à força do seu sorriso ao entoar e dançar um samba (resistência de gente triste e amargurada que inventou a batucada pra deixar de padecer, como bem disse Orlando Silva). Muito mais do que com suas falas, é com seus silêncios que Vivian Darini transmite a dor e o terror da repressão sufocando o público. Roberta Marcolin Garcia além de pôr em perspectiva o discurso típico dos repressores, mostra com leveza, que o humor também pode se revelar uma das melhores formas de resistência. Camila Shunyata conduz o público pela mão com o cuidado de uma enfermeira a aplicar uma injeção em um paciente amedrontado como um mal necessário. Cabe ainda o elogio ao apoio dado pela cenografia e figurino simples e instigante de Ana Paula Patrone e João Paulo Maranho, e também os jogos de luz e sobra de André Prado, Anderson Costa e Pitty Santana que reforçam ainda mais as dualidades e tensões exploradas no espetáculo.

 

Ora, são fios de Marias “de verdade” que tecem as narrativas de Ponto Corrente, e aí reside talvez a contribuição mais importante das Fiandeiras. Partindo de uma provocação do saudoso jurista sindicalista e memorialista Antonio Possidonio Sampaio, o grupo conseguiu a difícil tarefa de se aproximar de mulheres que resistiram à Ditadura (1964-1985) e registrar memórias difíceis, íntimas e femininas, quase sempre deliberadamente inacessíveis, e criar condições para que elas sejam trazidas a público. O trabalho de memória consiste em dar significado para o passado a partir das questões do presente. Nesse sentido as Fiandeiras convidam o público para a discussão de três temas atualíssimos de suma importância.

 

Um é o universo do trabalho, que já se manifestou no ABC de forma aguda se convertendo em projeto político nacional, atingindo desde questões como direitos dos trabalhadores desde o de condições de trabalho propriamente ditos até a moradia digna com acesso a serviços básicos como educação, saúde e saneamento – demanda atualíssima de muitos bairros da região. Outro, o da difícil memória da repressão conduzida pela Ditadura Militar em violação aos direitos humanos, legitimada pelo discurso disseminado por uma elite política que ainda insiste em interromper qualquer maturação democrática em que os direitos das populações mais vulneráveis e desprivilegiadas são reconhecidos e valorizados. Por fim, e não menos importante, Ponto Corrente traz, com delicadeza, do espaço mais íntimo e privado, a força e a importância do papel silencioso da mulher na sociedade e a urgência da defesa da igualdade de gênero e do combate a um dos preconceitos mais naturalizados que existe. Quem conferir o espetáculo terá plena noção disso na conversa com as atrizes após o final. Interessados ou desconfiados, não se preocupem. “Isso… é teatro!”

 

Marcelo de Paiva nasceu e cresceu no Grande ABC. Já adulto, uniu sua experiência de vida à sua atividade profissional de historiador tornando-se um pesquisador da região. Entre seus trabalhos mais significativos estão uma pesquisa de campo que resultou no livro Águas, trilhos e manacás – As cores da memória (disponível gratuitamente na internet) em que valoriza a memória das manifestações culturais e artísticas de Santo André, Mauá, Ribeirão Pires, Rio Grande da Serra e a vila de Paranapiacaba, e sua dissertação de mestrado Fabricando o Patrimônio Municipal: As ações de preservação do COMPAHC de São Bernardo do Campo, em que faz uma análise das políticas de preservação do patrimônio cultural bernardense.

Ponto Corrente

Por Thaís Póvoa

"A resistência é uma condição de intransigência cujas qualidades costumam gerar revitalização e certa beleza pela radicalidade vibrante que se opõe à submissão." Hugo Achugar[1]

 

A peça Ponto Corrente, do grupo Pontos de Fiandeiras, através das palavras da talentosíssima Adélia Nicoletti dá voz às mulheres militantes do ABC paulista, tendo sido criada a partir do que a própria autora nomeia de composição rapsódica: uma dramaturgia tecida em alicerces de origens diversas. Para isso, a seleção de uma vasta iconografia, filmografia, trechos de textos que serviram à essa criação, bem como relatos de personagens reais, fizeram parte e constituem esse tecido aparentemente fragmentado de materiais, mas que ao bom conhecedor da forma de se fazer teatro no ABC traduz em palavras muito bem amarradas um autêntico processo criativo colaborativo.

O grupo, fundado na mesma região, carrega em si trajetórias distintas de artistas locais que tiveram a Escola Livre de Teatro como um ponto de convergência entre suas formações, escola esta que se configurou como um espaço formativo crítico, gestado em 1989 em Santo André, fruto da tentativa de abertura nos anos pós ditatoriais de uma gestão cultural pautada em ideais democráticos e baseada no conceito de cidadania cultural como eixo de suas propostas, tendo feito parte de um amplo projeto de descentralização e democracia culturais pertencentes à primeira gestão de Celso Daniel.

Camila Shunyata, Roberta Marcolin Garcia, Vivian Darini e Fernanda Henrique são as atrizes criadoras deste processo, acompanhadas de Jé Oliveira ocupando a função da direção. Olhar para essas mulheres no palco me fez lembrar os anos 2000 na ELT onde as conheci e pude vê-las pela primeira vez. Se antes elas já possuíam o brilho no olhar de uma utopia vindoura, hoje os mesmos olhares preenchem-se da força do reconhecimento tanto da condição feminina como atrizes, mulheres, mães e artistas, que são, como do lugar de onde partem suas vozes, revelando a maturidade das escolhas para esse processo. A escolha pelo ABC como tema concreto de construção de memórias e narrativas denota o entendimento da importância desse lugar, de onde partem não apenas as experiências pessoais e suas respectivas trajetórias artísticas, mas o peso que carrega este chão, internacionalmente reconhecido como berço das lutas políticas de esquerda no Brasil.

A forma épica, pautada no momento do encontro entre aqueles que ocupam o lugar de onde o teatro é feito com os que ocupam o lugar de onde ele é visto, em diálogo franco e direto, é assumida em contraposição à ideia de ilusão provocada pela quarta parede da forma dramática. Apesar de repetirem, por diversas vezes, que o que vemos ali é teatro, a semelhança e atualidade do que estamos passando frente a um novo golpe desde 2016, remete à realidade intrínseca e inexorável de nossos tempos, tornando plenamente significativa a presença desse espetáculo dentro da mostra Teatro Político no ABC: Identidade e Resistência, promovida pelo SESC Santo André. Em certo momento o texto relembra a potência e homenageia as lutas através das obras representadas pelo Teatro de Alumínio, um importante grupo que se constituiu, historicamente, como um marco de resistência cultural no município de Santo André em meio ao regime cívico-militar instaurado em 1964. Como uma espécie de espelho da nossa própria experiência ao assistir a peça, ampliando a compreensão de que o futuro não se constroi sem a perspectiva resultante da leitura dos fatos que vieram antes de nós, a contextualização e análise críticas, constantemente presentes na obra dessas mulheres se tornam extremamente caras e urgentes aos nossos dias atuais.

Tendo o teatro nô como uma das inspirações dramatúrgicas através da história de três personagens mortas, a obra dá voz a todas que sofreram violentas perseguições políticas pela ditadura militar. A primeira, uma jovem militante da periferia de Mauá, do bairro Jardim Zaíra, Maria da Fé, que constituiu suas batalhas através do movimento estudantil e popular em seu bairro, é morta junto a seu pai, também militante. Como observa Gilda Waldman[2], ao retratar a violência sofrida por mulheres na ditadura chilena, mesmo não ignorando que as práticas de tortura tenham sido realizadas em corpos masculinos e femininos, as ações violentas sofridas por esses últimos manifestavam-se nas formas de repressão psicológicas e, frequentemente, sexuais. A segunda história, de Maria Auxiliadora, militante clandestina presa no município de Santo André, apresenta justamente tais pontos, seja através da participação dos filhos como objetos de tortura ou permitindo-os que vissem a mãe sendo torturada, seja sob o sadismo presente na invasão dos corpos femininos através do estupro como forma de tortura. A terceira história, de  Maria da Graça, moradora do município de São Bernardo do Campo, retrata a batalha sob outra perspectiva, dando visibilidade a militâncias invisíveis, como a de mulheres que não participavam da linha de frente, mas atuavam ativamente como apoio, recolhendo alimentos e preparando-os para a manutenção das lutas nas greves ou dando o suporte necessário para a permanência do cotidiano dos filhos durante a ausência de seus companheiros.

As três histórias gritam em nome de outras tantas memórias, que como estas, foram dissipadas, seja porque se fez questão de tentar fingir que esse momento tão vergonhosamente bárbaro nunca existiu, para que os culpados pudessem permanecer ilesos e ostentarem seus nomes como herois da nação em avenidas principais de nossas cidades, seja pelo machismo intrínseco ao nosso processo histórico,  que privilegia a representação masculina quando o assunto são as relações de poder, permitindo com que se apaguem dessas folhas as histórias de tantas mulheres, que como essas, perderam suas vidas em nome da luta pela democracia.

O espetáculo deixa bastante claro o ponto de vista de que uma das mais importantes formas de resistência passa pela batalha por outras possibilidades de construções de narrativas, ainda mais quando sabemos da manipulação desenfreada das mídias no que diz respeito à formação de opinião acerca da interpretação dos fatos. A verdade precisa ser contada e recontada a tantas e tantas pessoas que puderem ouvir, enquanto se puder falar. Sobre isso, empresto as palavras de Piscator ao afirmar que a literatura teatral "deve ser real, real até o fim, verdadeira até a inescrupulosidade, se quiser refletir essa vida. Mas terá de ser muito mais real, muito mais verdadeira se pretende introduzir-se nessa vida como força motriz"[3]. Para ele é a expressão da verdade que age no sentido revolucionário e essa força é vista no palco em Ponto Corrente, nesse encontro teatral pautado na narrativa destas barbáries que não podem ser esquecidas jamais, para que possamos não permitir que aconteçam novamente. Por fim só tenho a agradecer a resistência dessas mulheres que mantêm a sua militância e o seu posicionamento diante de tudo o que tem acontecido em nosso país.

 

*O espetáculo Ponto Corrente foi apresentado em 8 de abril de 2018 no SESC Santo André como parte da programação da mostra Teatro Político no ABC: Identidade e Resistência.

 

[1] Hugo Achugar é um escritor, ensaísta e pesquisador uruguaio.

[2] Gilda Waldman é uma socióloga chilena e doutora pela Faculdade de Ciências Políticas e Sociais da Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM). É autora do artigo intitulado Narrativas de Memória e Violência - Alguns itinerários da literatura chilena das últimas décadas, publicado na Revista Observatório Itaú Cultural – 22a edição (maio/novembro 2017).

[3] Trecho extraído do livro Teatro Político de Erwin Piscator. Editora Civilização Brasileira. Rio de Janeiro, 1968.

Thaís Póvoa é mestranda em Pedagogia do Teatro pela ECA – USP. Bacharel em Artes Cênicas com habilitação em Teoria Teatral pela USP. Atriz formada pela EAD/ECA-USP. Fundadora e integrante da Cia. Lona de Retalhos, que desenvolve pesquisa na linguagem do palhaço. Foi integrante da Cia. Inadequada, desenvolvendo pesquisa em teatro-dança e improvisação. É formadora em teatro  no Centro Livre de Artes Cênicas de São Bernardo do Campo – CLAC. Cursou aulas de palhaço com Bete Dorgam, Cristiane Paoli-Quito, Thaís Ferrara e Philippe Gaulier. Atuou como assistente do Programa de Palhaços para Jovens dos Doutores da Alegria. Como arte-educadora trabalhou no Programa Fábricas de Cultura da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo, Programa Vocacional da Secretaria de Cultura da cidade de São Paulo, na Fundação Criança e no Programa Juventude Cidadã em SBC. Seus principais trabalhos no teatro foram: “Ato sem Palavras I” com direção de Cristiane Paoli-Quito, “Esperando Gordô” dirigido por Marcelo Gianini, “Emquanta – Dança para crianças pequenas e seus pais”, do Núcleo Quanta, Otelo e a Loira de Veneza  e Rinocerantas, dirigido por Bete Dorgam.

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